Eu consigo acessar a pasta de arquivos que existe dentro da minha cabeça com clareza e rapidez para contar esta história.
Clareza o suficiente para eu poder concluir em um parágrafo que todas as pessoas do Planeta Terra cometem erros, alguns mais significativos do que outros. E já que na Travel também buscar contar relatos reais e compartilhar nossos aprendizados viajando ao redor do mundo, chegou a hora de narrar um episódio que eu poderia nomear como: “As favelas sul-africanas e a maldição da selfie”. Eu pessoalmente achei um bom título, e espero fazer jus a ele.
Lá estou eu, com 17 anos e dentro de um ônibus com meus colegas da turma de inglês que vieram de todos os cantos do mundo. Saímos dos nossos dormitórios em um dia de inverno na Cidade do Cabo, rumo ao que seria um passeio a um township.
Os townships, na África do Sul, correspondem ao que seriam as nossas favelas brasileiras, porém, a maneira como eles se organizam é o que os diferencia um do outro. Estamos acostumados com construções de alvenaria encravadas nas encostas, sem reboco, sem pintura, que ficam em morros e em pontos altos das cidades. Algumas com as vistas mais bonitas do Brasil, como o Morro Dona Marta e o Vidigal, no Rio de Janeiro.
O QUE SÃO OS TOWNSHIPS?
Na África do Sul, elas se encontram nas áreas chamadas de flats, as terras planas. Elas são afastadas do centro e cresceram de maneira desproporcional desde o começo do Apartheid, quando receberam milhares de negros, mulatos e indianos vindos de todas as direções em busca de um lugar para morar.
As moradias se assemelham a barracos quadrados feitos de lata de zinco e tábuas de madeira. Ficam nas regiões remotas da cidade, sem acesso à eletricidade, água encanada, educação e um sistema de saúde decente. Não há calçamento da porta para fora, e as ruas de areia vivem alagadas durante o inverno e salpicadas de lixo. As favelas e os townships podem ser diferentes estruturalmente, mas em sua essência carregam a mesma história de luta e segregação.
Depois de mais ou menos duas horas que o nosso ônibus deixou o Bairro Sea Point, perto da região central da Cidade do Cabo, chegamos a Langa. O meu grupo da escola, com adolescentes das mais variadas origens e personalidades, desceu do ônibus e colocou os pés em uma township pela primeira vez, e isso também me incluía. Eram adolescentes do Gabão, de Madagascar, da Arábia Saudita, França, Itália, Congo, Ilha da Reunião e Alemanha. Assim que chegamos, encontramos a nossa guia, chamada Dalji, que já fora (havia sido) moradora daquele distrito.
Dalji estava em constante contato com as escolas de inglês e agências de turismo da Cidade do Cabo, já que Langa é uma das poucas townships consideradas pacíficas para se conhecer. Ouvir dela mesma que os passeios eram uma maneira de ganhar dinheiro e atrair turistas e estudantes brancos para conhecer a township onde ela fora criada soou direto e reto para mim na época.
“O destino é recomendado para quem quer enxergar um outro lado da cidade, e os interessados não faltam.”
Ter feito esse tour e estar presente naquele contexto em 2016 me colocou em contato com muitas coisas novas e diferentes do meu cotidiano, e isso eu não posso ocultar. Tive contato com falantes de diversas línguas faladas na África do Sul, como o Xhosa, o Afrikans, o Zulu e o inglês. Conheci um espaço cultural em Langa que tinha um comércio voltado para os artesanatos locais que preservavam a arte tradicional do país, almocei com meus colegas e professores em um restaurante local com uma comida típica africana, e assisti a uma apresentação de dança das crianças que moravam ali.
No fim do dia e entre becos e vielas, a nossa guia direcionou o nosso grupo a uma casa com um minúsculo quarto onde, na época que visitei, viviam cerca de três famílias. Durante o dia, ninguém ficava por lá, porque não havia espaço suficiente para todos se reunirem, e, durante a noite, todos se espremiam para algumas horas de descanso. Para visitar o quarto era preciso que pequenos grupos entrassem por vez.
Não havia muito a ser visto, era uma cama, uma janela e uma espécie de armarinho. E lá se encontrava um senhor, que estava provavelmente nos seus 60 anos e parecia acostumado com aquela aglomeração de jovens estrangeiros na porta de sua casa. Entrei no quarto com o meu grupo e a Dalji. Dei uma olhada ao redor, entreguei meu celular à minha colega de quarto e pedi que ela tirasse uma foto minha com aquele senhor. Eu me aproximei ao seu lado, murmuramos algo um para o outro, e tirei uma foto bem ali. O silêncio depois do clique foi ensurdecedor.
Sempre que eu me percebo contando aos meus amigos sobre a minha experiência na África, eu me deparo com esse dia em específico e me pego refletindo sobre qual foi a minha intenção e o que eu estava pensando quando pedi uma foto ao lado daquele senhor que não falava a minha língua, naquele quarto minúsculo e que era tudo o que ele tinha.
Eu estava pensando em chamar atenção para uma situação crítica que mais de 60% da população sul-africana se encontra, ou estava abrindo um espaço para que aquele homem pudesse dizer algo sobre a sua história? Não, eu não tinha feito nada disso.
E, naquela época, infelizmente e honestamente esse não era o tipo de preocupação que eu carregava. Eu não fazia as perguntas que faço hoje e não procurava por informações e respostas nos lugares corretos. Aos 17 anos, o que passava na minha mente era como seria tirar uma foto naquele cenário e qual o número de curtidas que meus amigos no Brasil dariam para a minha viagem nas redes sociais. É bizarro pensar em como a minha geração foi treinada para procurar validação das suas ações o tempo todo. Inclusive na internet.
Eu simplesmente vinha procurando por validação por meio de uma rede social havia tanto tempo que eu não soube filtrar até onde a vida online impactava a minha vida real. Especialmente os meus valores. Essa relação distorceu toda a minha visão de mundo e me cegou mesmo que por segundos.
Trata-se de uma necessidade muito específica do Ocidente que foi ensinada durante a história da humanidade a retratar a África como um lugar em ruínas, escasso e com crianças que nem sabem o que é a época do Natal. Isso reforça a visão de que os africanos nunca podem ser a solução dos seus problemas, de que são impotentes, sem recursos, e que a luz do sol e a esperança só surgem por meio do abraço de alguém de pele branca. E isso só perpetua estereótipos inúteis e limitantes. Em vez disso, deveria haver um espaço para promover as vozes do continente africano, para que haja um debate sério e para que elas sejam ouvidas na mesma proporção que o “heroico colonizador branco”.
Bastava eu me fazer as seguintes perguntas:
“Como eu agiria em um abrigo para pessoas sem-teto na minha própria cidade?”
“Eu pediria para eles posarem para uma foto em que eu seria a protagonista?”
“Se eu visse uma criança brincando, eu a tomaria pelos braços e a seguraria no alto como um troféu?”
Eu acho que não. Essas são perguntas que poderiam ter sido feitas naquela hora. A imagem se tornou extremamente importante na sociedade em que vivemos. É algo em que todo mundo escorrega uma vez ou outra na vida, até escolher abrir mão dela em prol da própria liberdade e sanidade mental. Tours semelhantes também são realizados em países como Índia, México, Quênia, Brasil e Tailândia. Fazem parte do que é chamado pelos estudiosos de “Turismo da Pobreza” ou “Turismo da Miséria”.
Mas quão verdadeira pode ser a experiência de um tour guiado de algumas horas?
Não é ético que as agências de turismo capitalizem em cima da pobreza alheia, muitas vezes sem contribuírem em nada para o desenvolvimento daquela comunidade. É verdade que existem casos de serviços de turismo que destinam parte dos lucros para o desenvolvimento da comunidade ou que contratam moradores das favelas para serem os guias do tour, gerando empregos lá dentro. No entanto, essas iniciativas parecem estar mais perto de uma jogada de marketing do que qualquer outra coisa. O turismo de favela transforma a pobreza em puro entretenimento, e isso não é de hoje.
Aqui está “As favelas sul-africanas e a maldição da selfie”, que eu tive tanto receio de escrever. Deixei para vir a tona ao mundo quando tivesse feito as pazes comigo mesma e estivesse pronta para assumir esse erro dessa maneira. Eu queria que esse episódio servisse para alguma coisa. Algum modo de pegar essa vivência em um outro país e transformá-la em algo melhor. Ou que ao menos tivesse alguma utilidade.
Porque eu sinto que existe muito mais a ser dito sobre esse tipo de turismo e a nossa relação tóxica com as mídias sociais. Ainda tenho muitas lições a serem aprendidas ao longo da vida, e essa foi uma delas. Depois dos erros, é preciso começar de algum lugar, não é?
Existe mais do que uma oportunidade para uma foto nos townships, como Langa, na África do Sul; nas colônias populares, no México; nos chawls, na Índia; iskwaters, nas Filipinas; baladis, no Cairo; os ghettos, nos Estados Unidos da América… Ou em qualquer favela no Brasil.
Existe uma maneira de viver admirável e histórias a serem contadas em um volume alto o bastante para serem ouvidas. Acredito mesmo que precisamos de mais almas sensíveis culturalmente, porque são essas pessoas que entenderão o que realmente acontece em lugares como esse, assim, poderão de fato ter algo para dizer ao mundo. Honestamente, espero que ao longo da minha jornada eu possa me tornar uma delas. Se possível, você que está lendo isso, também.