À caminho da Chapada dos Veadeiros.
Da janela do carro, um retrato em movimento forma um horizonte de poucas árvores… Árvores retorcidas em si próprias e de raízes profundas, daquelas que se esforçam muito por encontrar água; e espalhadas em meio a uma vegetação amarela quase seca demais. Não posso nem dizer que essa visão não me fez abismar, a cada novo quilômetro, em pensamentos um tanto escassos — e o calor intenso amplia os sentidos.
Mas com o tempo fui, involuntariamente, percebendo que a aparente vulnerabilidade do cerrado fala sobre resistência, e força. Talvez isso tenha acontecido depois de reparar nas sempre-vivas canelas de ema, uma planta nativa que colore o cerrado brasileiro, ou quando reparei na cor, e na suposta casualidade, dos ipês verdes, roxos, rosas… Talvez tenha acontecido quando vi araras sobrevoando o carro quando tudo parecia tão parado, ou quando me pus a contar os infinitos tons de ervas. Até que, subitamente, morros imponentes surgiram para tirar de vez meu fôlego.
Cheguei, enfim. Depois de 1.288 quilômetros percorridos em 14 horas de carro, de São Paulo até o primeiro pedaço da Chapada dos Veadeiros, foi assim que esse lugar me abraçou, mais uma vez, depois de seis anos. E me pôs novamente na sua jornada que, já adianto, é algo mais sobre a vivência construída ao longo dos (próximos) dias — onde os caminhos e o caminhar são, literalmente, a própria viagem.
O Waze nos guiou para um dos polos do ecoturismo do Brasil, o coração da terra, regado a banhos energéticos das suas mais de mil cachoeiras e da sua viva cultura popular. Mas, mais precisamente, indicava Alto Paraíso, onde nos hospedaríamos pelos primeiros dias; e onde, normalmente, os turistas se hospedam mesmo, por ser mais urbano e estrategicamente localizado (perto do posto de gasolina, de muitas cachoeiras etc).
CHEGAR E SE ACONCHEGAR
Ao chegar, é preciso se aconchegar, porque o dia seguinte já é de trilha. Logo pela manhã, é hora de tomar um café reforçado (recomendo tomar ali na padaria Santa Maria) e partir de carro por estradas de asfalto e terra até a entrada das trilhas, cujos trajetos podem levar 30 minutos ou três horas; e mais 30 minutos ou três horas a pé, cruzando a savana mais rica do mundo, entre pirambeiras, ‘escalaminhadas’, rios e um Sol que poucas vezes divide espaço com a sombra.
Por meio desses ciclos rotineiros de acordar e dormir no cerrado você percebe que a magia desse lugar está no que chamo de “cadência da Chapada”.
Porque é como se, ao longo da viagem, adentrássemos um certo frenesi rítmico, em que, todos os dias, alvoradas matutinas são seguidas de longos deslocamentos até as cachoeiras. Nos ensinando a cada passo que não adianta ir com pressa demais e nem parar demais; que, na Chapada, sempre é tempo para um bom papo; que o bom humor engana o medo; e que o Sol flameja sob as nossas cabeças até que sutilmente ele se afasta, dizendo que é hora de voltar.
Ritmo nesse lugar é essência, no sentido de pulsão, ciclo, ritual e, principalmente, equilíbrio — com você, com as pessoas e com as paisagens em sua volta.
PRIMEIRA VEZ CHEGUEI VOANDO, NA SEGUNDA CHEGUEI POR TERRA
Na primeira vez, em 2016, fiquei dez dias na vila de São Jorge. Um vilarejo de terra pitoresco, onde está a entrada do Parque Estadual da Chapada e onde acontecem as edições anuais do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, encontro cultural multiétnico entre povos indígenas, quilombolas e brasileiros de outras raízes. E para mim, diferente da maioria das pessoas, o melhor lugar para se hospedar.
De mochila nas costas e um tanto mal preparadas, minha irmã e eu embarcamos de avião para Brasília, depois pegamos um ônibus até Alto Paraíso e, por último, já no escuro da noite, conseguimos uma carona improvisada até o vilarejo de São Jorge, que fica a 40 minutos de Alto Paraíso, a “capital” da Chapada.
Sem muitos planos, aproveitando as caronas solidárias (e seus respectivos itinerários), essa viagem foi uma experiência única… Logo, minha segunda ida para a Chapada haveria de ser bem diferente, ainda mais seis anos depois. Seria equivocado tentar ressignificar a Chapada, porque voltar depois de um tempo pode ser uma experiência tão única quanto visitar dois lugares diferentes. O desafio estaria em saber distinguir o que estava diferente de fato e o que estava diferente em mim.
Desta segunda vez fui de carro, ficando os primeiros dias em Alto Paraíso e só depois fui para São Jorge. Porque ou você viaja com seu carro ou pega um voo até Brasília e, de lá, aluga um carro. Quer dizer, não dá para ficar sem carro, e minha irmã e eu só fomos aprender isso chegando lá!
Pelas estradas de Goiás, a predominância dos pastos e da monocultura mostra uma natureza enfraquecida e quem manda por aqui. Mas chegando a Alto Paraíso, quando comecei a ver mais árvores, daquelas retorcidas, como bem lembrava, veio a sensação de alívio. Eu estava, enfim, na Chapada, um ‘oásis’ de preservação em meio ao agronegócio –por conta do parque, da reserva dos quilombos Kalungas, entre outras áreas preservadas, ainda que o espaço das lavouras na região tenha aumentado em 300% nas últimas décadas.
O contraste entre os campos devastados e a vegetação do parque me fez chegar à Chapada com uma consciência diferente, achando que esta viagem me traria vivências mais tangíveis e não tão mágicas, ainda que carregasse a certeza de que entranharia a inevitável “cadência da Chapada”. Como numa metáfora, dá até para dizer que da primeira vez cheguei voando e, da segunda vez, cheguei por terra. Mas será que tudo é mesmo uma questão de referencial?
TURISMO DE MASSA X TURISMO EXCLUSIVO
Quando fui para a Chapada dos Veadeiros pela primeira vez, paguei em torno de R$20 para visitar a famosa Cachoeira do Segredo, enquanto nas demais cachoeiras que visitei entrei de graça. Já na segunda vez, não só paguei o dobro para entrar nessa mesma cachoeira, como tive que pagar pelo menos R$40 para visitar as demais — nem que fosse pela simples vontade de me refrescar do Sol do cerrado (claro, sempre existem cachoeiras alternativas que podem ser acessadas de graça, mas te desafio a encontrá-las!). Além de, eventualmente, me deparar com uma corda impedindo que eu chegasse até a queda da cachoeira ou de ter um limite de tempo para a visita.
Tudo bem diferente, não parece muito uma questão de referencial.
A situação atual é uma resposta ao aumento do turismo. Nos últimos anos, o turismo cresceu muito na Chapada devido à pandemia, principalmente, que limitou a circulação para fora do país e aumentou a busca por destinos de natureza. Nesse sentido, o aumento no valor das entradas, assim como em todos os demais aspectos turísticos, como hospedagem, restaurante e lojas é uma forma de restringir o acesso da Chapada àqueles que podem pagar e assim controlar o número de turistas.
Em outras palavras: o aumento no valor da viagem indica que está acontecendo uma movimentação, planejada ou não, em direção ao turismo exclusivo (até luxo), que substituirá o turismo em massa e suas presumíveis-disfuncionalidades.
Essa transição, em um contexto geral, está positivamente ligada à redução do impacto do turismo na natureza, — já que poucos turistas têm consciência dos impactos que causam durante a viagem — e no aumento da geração de emprego e de capital para os moradores locais. Contudo, ao mesmo tempo, não irá culminar em uma realidade democrática. Do seu lado negativo, vemos uma mudança que promove o elitismo e a inacessibilidade, além da ideia de que a comunidade deverá gerir a si própria, sem contar com a ajuda de uma organização política.
Ao que sugerem alguns, mas eu mesma não saberia dizer com precisão, o turismo exclusivo é o único recurso restante para a preservação da natureza, acrescido da possibilidade de gerar capital para essa comunidade que recebe pouquíssimo apoio de seus governantes. Me pergunto se, em nome da democratização, o ideal mesmo não seria controlar a circulação das pessoas em defesa à natureza e, paralelamente, reivindicar o auxílio do governo para não precisar que todos os turistas tenham dinheiro? Provavelmente.
E também me pergunto quem poderia garantir que esse lucro seja usado, efetivamente, para o desenvolvimento da Chapada enquanto uma comunidade e não um apenas um destino turístico, necessitado de restaurantes e lojas? Estimo que as possibilidades são bem baixas. Aliás, é sempre importante frisar que estamos falando de um lugar com demandas inegociáveis como saneamento básico, hospitais, escolas e que, dubitavelmente, serão asseguradas sem a presença de políticas públicas, só considerando a administração do lucro (de alguns).